segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O DIREITO À ESCUSA DE CONSCIÊNCIA NA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL


O DIREITO À ESCUSA DE CONSCIÊNCIA NA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL



LAERTE FERNANDO LEVAI
Promotor de Justiça em São José dos Campos/SP

 1. INTRODUÇÃO

             A experimentação animal, definida como toda e qualquer prática que utiliza animais para fins didáticos ou de pesquisa, decorre de um erro metodológico que a considera o único meio para se obter conhecimento científico. Abrange a vivissecção, que é um procedimento cirúrgico, invasivo ou não, realizado em animal vivo. Ela ocorre com freqüência no ensino didático e nas pesquisas de base realizadas nas faculdades de medicina, biologia, veterinária, zootecnia, educação física, odontologia, farmácia, etc, apesar de alunos nem sempre a receberem com naturalidade. Sabe-se afinal, que apesar do ilusório paliativo representado pelo emprego de anestesia, os animais perdem a vida em experimentos invariavelmente cruéis, submetidos que são a testes cirúrgicos, toxicológicos, comportamentais, neurológicos, oculares, cutâneos, psicológicos, genéticos, bélicos, dentre outros tantos, sem que haja limites éticos – ou mesmo relevância científica – em tais atividades. Macabros registros de experiências com animais praticadas nos centros de pesquisa, nos laboratórios, nas salas de aula, nas fazendas industriais ou mesmo na clandestinidade, revelam os ilimitados graus da estupidez humana. Sob a justificativa de buscar o progresso da ciência, o pesquisador prende, fere, quebra, escalpela, penetra, queima, secciona, mutila e mata. Nas suas mãos o animal vítima torna-se apenas a coisa, a matéria orgânica, enfim, a máquina-viva.

            Predomina no meio acadêmico, via de regra, a mentalidade vivisseccionista. O método científico oficial, herança francesa dos ensinamentos do filósofo Renê Descartes (1596-1650) e do fisiologista Claude Bernard (1813-1878),  faz com que ainda hoje o corpo docente repasse aos alunos as informações que recebeu e assimilou passivamente, ao longo de várias gerações, como a única fonte “confiável” de conhecimento. A autoridade do professor, representante da instituição escolar, assim como a metodologia reducionista por ele adotada, raramente é questionada pelo estudante da área de biomédicas, que se cala por receio de se prejudicar na avaliação superior e por temor reverencial, inclusive. Nesse contexto, a ordem emanada da universidade torna-se imperiosa, oriunda de uma autoridade que incorpora uma verdade científica particular e que, sem admitir refutações, decide o que é certo ou errado no ensino, quem manda e quem obedece,  quem mata e quem morre.

                 Em termos legais, a atividade vivisseccionista esteve durante muito tempo respaldada unicamente na Lei federal nº 6.638/79. Com o advento da Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), na qual o legislador inseriu um dispositivo específico sobre crueldade para com animais, sua prática passou a ser considerada delituosa caso não adotados os métodos substitutivos existentes. É que o artigo 32 § 1o do diploma jurídico ambiental incrimina quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”,cominando aos infratores pena de três meses a um ano de detenção, além de multa, sem prejuízo da respectiva sanção pecuniária administrativa.

            Considerando a existência, na atualidade, de uma vasta gama de recursos hábeis a livrar os animais de seus padecimentos na mesa do vivissector, faz-se necessária uma mudança de paradigma na mentalidade dos mestres e dos pesquisadores, uma pequena revolução interior que lhes permita conciliar a ética à atividade didático-científica. O caminho já foi indicado na própria Lei Ambiental: adoção de métodos alternativos à experimentação animal. Mencionado dispositivo ajusta-se perfeitamente ao mandamento supremo expresso no artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, em que o legislador houve por bem vedar as práticas que submetam animais à crueldade: Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade”.  Daí a legitimidade de o estudante de biomédicas em buscar meios mais compassivos de pesquisa, os quais já existem e poderiam ser colocados em prática nas escolas.  

            É preciso, para isso, romper o silêncio que impera no campo da experimentação animal, enfrentando os tabus existentes, desmistificando crenças, questionando verdades preconcebidas, ampliando nossa perspectiva ética e projetando a noção do justo para além da espécie dominante. Como bem escreveu o professor Thales Tréz, no prefácio ao livro “Alternativas ao uso de animais vivos na educação”, de autoria do biólogo Sérgio Greif, a vivissecção faz com que os próprios alunos se tornem vítimas indiretas de seu equivocado método de pesquisa: “O uso de animais expõe o estudante muitas vezes a contradições, como o de matar para salvar, ou desrespeitar para respeitar. Segundo ele, a prática do uso de animais seja em que área for, é insustentável do ponto de vista econômico, ecológico, ético, pedagógico e principalmente, incompatível com uma postura de respeito e cuidado para com a vida”.

            Uma das formas legais de o estudante de ciências biomédicas desafiar a ordem cultural vigente é recorrer à cláusula de objeção de consciência à experimentação animal. Semelhante, sob certos aspectos, à desobediência civil, ela constitui uma legítima recusa à metodologia científica oficial, ao permitir que o aluno dissidente resguarde suas convicções filosóficas diante de procedimentos didáticos que se perfazem mediante a matança de outros seres senscientes. A objeção de consciência, portanto, é um ato praticado pelo sujeito que se recusa a obedecer à ordem superior que viola sua integridade moral, espiritual, cultural, política, etc. Trata-se de um legítimo direito do estudante, que, de modo pacifico,  o invoca não apenas para resguardar as suas convicções íntimas garantidas pela Carta Política, mas sobretudo para salvar a vida e poupar os animais de sofrimentos. Neste ponto há uma interessante hibridez na atitude estudantil objetora, em que a conduta ética ultrapassa a barreira das espécies para constituir em instrumento político para uma mudança de paradigma.

            O fundamento jurídico para invocar a resistência passiva encontra-se principalmente no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais da Constituição Federal – artigo 5º, incisos    VIII -, conjugado com incisos II e VI (parte inicial) e no artigo 225 par. 1º, inciso VII (parte final) da Carta da República, podendo ser exercido mediante o exercício do direito de petição no âmbito administrativo (art. 5º, inciso XXXIV), sem prejuízo de  o interessado – se necessário – ingressar em juízo com Mandado de Segurança (artigo 5º,  LXIX, da CF).

* Publicamos a introdução do artigo com a finalidade de oferecer uma primeira orientação àqueles que se sentem intimidados ou inseguros, ou que decidam, pelos seus princípios e convicções, a não participar de estudos, experimentações e pesquisas utilizando-se de animais vivos, sem que isto traga benefício direto ao animais e não lhe cause dor ou sofrimento. O texto completo pode ser localizado em http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_urbanismo_e_meio_ambiente/biblioteca_virtual/bv_teses_congressos/Dr%20Laerte%20Fernando%20Levai.htm 

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